Eduardo Ritter
Ruas esburacadas, Alzheimer e outros causos
Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Hunter S. Thompson, escritor e jornalista criador do jornalismo gonzo nos anos 1970, tinha como hábito andar sempre com um gravador ligado em suas andanças para depois ouvir as conversas e criar os seus textos. Como em muitas das reportagens que fez, nas quais ele estava bêbado ou chapado de outras drogas, tal técnica sempre foi muito útil, como por exemplo na mais famosa de todas: Medo e delírio em Las Vegas, publicada inicialmente na revista Rolling Stone e, posteriormente, como livro (em português, publicado pela L&PM). Nesta semana, ao perceber que uma conversa interessante se aproximava, quase liguei o gravador do celular. No entanto, logo concluí que tal recurso era desnecessário, pois foi um diálogo tão breve e inesperado que gravei tudo na minha massa cinzenta.
Eu tive que procurar uma oficina para fazer um check up nos amortecedores, suspensão, pneus, etc., pois Pelotas anda tão esburacada que meu pobre carrinho está indo para as cucuias. Enquanto os caras faziam o serviço, fiquei em uma salinha de espera. Em pouco tempo vi um senhor, de mais de 80 anos, andar lento, magro, de cabelos brancos escondidos em um boné de uma marca de pneus famosa, entrar na sala e sentar ao meu lado após pegar um copo de água de plástico e encher no filtro. Ele logo puxou assunto, perguntando sobre quando e onde passaria o jogo do Inter contra o River. Nem eu sabia, mas procurei no celular os detalhes do jogo e o informei. Depois de reclamar que a Alice Bastos Neves não tinha dito o horário da partida, ao ver a propaganda na TV sobre o jogo da Seleção feminina, ele repetiu umas dez vezes em voz alta: "Anselmo, não esquece! Jogo do Inter hoje, às 21h, no canal 163 da antena. E amanhã às 7h da manhã as gurias na Globo".
Eu ouvia ele repetindo a frase e torcia para que não esquecesse, pois senão eu me sentiria culpado. Então, ele contou que era separado e que a ex mulher falecera há poucos anos. A essa altura o especial do Tonho da Lua estava passando na TV. Ao ver uma mulher com um decote conversar com o Tonho, ele riu e disse: "Ela tá toda, toda, pra ele". Eu gargalhei. "Elas aparecem. Ah, se aparecem. Esses dias eu estava em casa e apareceu uma mulher com uma sainha minúscula. Eu disse que estava sozinho com o Nosso Senhor em casa e ela disse que estava necessitada daquilo que ela sabia que eu tinha..."
E, então, contou como copularam na beirada da cama. Ao mesmo tempo em que era engraçado, eu sentia pena do pobre senhor, pois já tive vários familiares com Alzheimer, e nessa breve conversa reconhecia vários dos sintomas. Antes de ir embora, porém, ele repetiu mais uma vez: "Anselmo, não esquece! Jogo do Inter hoje, às 21h, no canal 163 da antena. E amanhã às 7h da manhã as gurias na Globo". E completou: "Vou levar esse copinho de plástico para não ser desperdiçado".
Grande seu Anselmo. Depois, fiquei pensando que poderia ter sugerido ele para gravar a frase no celular para ouvir depois, caso esquecesse o horário e o lugar onde assistir. Mas, se ele esquecesse que gravou, tudo seria inútil... Enfim, fiquei ali, pensando no seu Anselmo, no Hunter Thompson e no prejuízo que as ruas esburacadas de Pelotas me deram. Aliás, adivinhem para quem sobrou para pagar a conta de tal estrago?
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